Startups: como Israel semeou a cultura da inovação para criar empreendedores em série.
São Paulo – De olho nas novas oportunidades do mercado automotivo, a Intel anunciou em março deste ano a compra da startup israelense Mobileye, que desenvolve tecnologia de veículos autônomos, por 15,3 bilhões de dólares. O acordo foi o maior da história do setor de alta tecnologia de Israel, superando em muito transações mais “badaladas”, como a aquisição do serviço de mapas Waze pelo Google, em 2013, no valor de 1,15 bilhão de dólares.
Quando soube da investida, o primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanyahu, felicitou o presidente da Mobileye, Ziv Aviram. “O acordo é um testemunho dramático da visão de negócios da Mobileye. Israel tornou-se um centro tecnológico mundial, não apenas em segurança cibernética, mas em automóveis”, afirmou Netanyahu em comunicado.
Não há exagero aí. Com uma população de 8 milhões de pessoas, Israel é a segunda nação mais inovadora do mundo, perdendo apenas para a Suíça, de acordo com o Relatório de Competitividade Global 2016-2017 do Fórum Econômico Mundial (FEM), que classifica a competitividade dos países com base em 12 categorias, incluindo inovação, preparo tecnológico, sofisticação de negócios e educação superior.
Mais de 300 multinacionais possuem escritórios no país. A poucos metros de distância no centro de Tel Aviv, é possível trabalhar para o Google, Facebook, Paypall, Qualcomm, Intel, Microsoft, e centenas de outras gigantes. Ser incorporada a uma delas é meta para as cerca de 5 mil startups em operação por lá. Outro sonho é abrir capital na bolsa americana Nasdaq. Depois do anfitrião e da China, Israel é o terceiro país com mais empresas de tecnologias listadas, 80 no total, o que é alto em relação ao seu tamanho.
E não é apenas a bolsa americana que o país atrai, mas o fator mais crítico e palpável da promessa tecnológica: capital de risco. Em 2016, empresas privadas de alta tecnologia israelenses levantaram um recorde de 4,8 bilhões de dólares, 11% a mais em relação a 2015, de acordo com um relatório do Centro de Pesquisa do Israel Venture Capital (IVC) e do escritório de advocacia ZAG.
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“Atualmente, Israel atrai mais capital de risco per capita que qualquer país do mundo. Cerca de 80% do investimento em alta tecnologia vem de fora. Há mais de 100 firmas no país, desde investidores corporativos, como Microsoft, Google, Qualcomm, que operam aqui através de seus braços de capital de risco, até as gigantes, como a Sequoia Capital e a Greylock Partners”, diz Inbal Arieli, empreendedora serial e espécie de guru no cenário de startups de alta tecnologia de Israel.
Arieli fundou, em 2010, a primeira aceleradora de startups do país, a 8200 EISP, focada em apoiar o desenvolvimento de negócios inovadores capitaneados por ex-alunos da equipe de elite militar 8200, unidade de inteligência das Forças de Defesa de Israel, semelhante à Agência de Segurança Nacional dos Estados Unidos, NSA.
Durante o serviço militar obrigatório para homens e mulheres, Arieli foi tenente na Unidade 8200. Segundo ela, a combinação da capacidade de trabalho em inteligência tradicional com as tecnologias mais avançadas do mundo confere ao centro militar a fama de usina de empreendedores, especialmente no campo da segurança cibernética.
Para muitos empreendedores israelenses, a jornada de iniciação no mundo dos negócios começa nas unidades tecnológicas das Forças de Defesa do país. Os desenvolvedores da Unidade 8200 trabalham diretamente com seus “clientes”, no caso os oficiais de inteligência. Nada vem pronto de fora. Todos os sistemas de tecnologia, desde análise até gerenciamento de dados e interceptação são projetados e construídos internamente na unidade.
Mesmo antes de começar sua primeira empresa, os jovens alunos da Unidade 8200 desenvolvem na prática habilidades e experiências críticas para atuar profissionalmente no mercado depois. O serviço de mapas Waze, a plataforma de criação de sites Wix, as empresas de cibersegurança CheckPoint e Imperva, e a de telecomunicação Gilat, todas têm suas raízes nesse centro de inteligência.
Apesar do fenômeno e da fama da Unidade 8200, para a guru de startups, a gênese do espírito empreendedor israelense remonta ao berço. “Nós nos alistamos no serviço militar aos 18 anos de idade. Então, para mim, tudo começa bem cedo, tem a ver com o espírito e a cultura de quem nasce e cresce aqui”, afirma Arieli, que está escrevendo um livro para desvendar as raízes do empreendedorismo no país.
Numa manhã de conversa com jornalistas em Tel Aviv neste mês, Inbal Arieli contou como o país semeou a cultura da inovação para criar empreendedores em série. “No setor de alta tecnologia em Israel, 90% das startups fracassam. Então de cada 10 empreendedores, só um terá sucesso. Mas eles sabem disso e continuam tentando. Eles acreditam que um dia vão conseguir também. Ser empreendedor é um tentar constante”, sentencia a guru.
Confira a seguir os principais trechos.
Empreendendo no jardim de infância
Nos anos 1950, um professor de jardim de infância em Israel desenvolveu uma metodologia de ensino chamada “Junkyard” (“quintal de sucata”, em tradução livre), segundo a qual as crianças não deveriam interagir com brinquedos plásticos ou produtos prontos, mas deveriam brincar com tudo o que estivesse ao redor delas. É muito comum você ver pequenos nos jardins de infância brincando com jornais velhos, por exemplo, ou telefones sem uso. E você não diz o que eles devem fazer com aquilo, eles fazem o que bem entenderem.
Com sua criatividade e curiosidade, as crianças podem bolar formas diferentes de usar esses materiais, que nós jamais pensaríamos. Então, desde os anos 1950, em todos os jardins de infância dos chamados kibutz de Israel [associações comunitárias de produção majoritariamente agrícola], as crianças brincam com artigos velhos ou sem uso que os pais doam para as escolas. É nesse ecossistema não muito organizado nem muito limpo que as crianças se divertem. E elas aprendem muito com isso, usam sua criatividade, exercem sua independência e aprendem muito sobre trabalho em conjunto.
Uma televisão ou um monitor de computador são objetos muitos pesados para uma criança carregar sozinha, ela precisa da ajuda dos amigos. Nesse processo, ela também aprende sobre gestão de risco, porque em geral esses objetos velhos não são muito seguros.
Acreditar em si mesmo e no grupo
Existe uma tensão constante entre o exercício de uma forte individualidade, de pensar e construir coisas novas, e o ato de trabalhar em equipe e o senso de comunidade e família. Essa tensão é muito presente em nossa vida em Israel. Há uma canção popular que resume esse processo e que é ensinada nas escolas do país. Ela conta a história de como Israel foi construído: “Eu construí uma casa, eu pavimentei uma rua, eu plantei uma árvore […]”. Pense no poder que essa música transmite para uma criança. Mas aí vem a pergunta “Quem construiu o país”? “Todos nós juntos”.
Mas o que tudo isso tem a ver com startups e tecnologia de ponta? Trabalho em equipe, de um lado, e um forte senso de individualidade, no outro, é uma tensão que também existe no mundo da tecnologia.
Um empreendedor tem que ser capaz de confiar em si próprio, ter uma individualidade bem forte, e ao mesmo tempo ser capaz de liderar e trabalhar em equipe. A história de sucesso de startups nunca diz respeito a uma única pessoa.
Há um feriado nacional em Israel chamado Lag Baomer que é celebrado com grandes fogueiras e, por isso, é o feriado mais querido pelas crianças. Elas se preparam ao longo de semanas para os festejos e fazem tudo por conta própria. Elas saem em busca de restos de pedaços de madeira em áreas de construção e fábricas e juntam tudo em carrinhos de compra emprestados dos supermercados.
Ao longo do feriado, elas montam as fogueiras e são bastante ativas nos preparativos, apesar de todos os riscos envolvidos. Nesse processo elas aprendem muito. Muitas vezes, colegas estrangeiros me perguntam quem faz o seguro dos eventos desse feriado, uma preocupação bem americana, mas aqui ninguém pensa muito nisso.
Algumas regras foram feitas para serem quebradas
Recentemente participei de uma viagem de escola que um dos meus filhos fez e que envolveu a travessia de um rio próximo à fronteira da Jordânia. No trecho, acessível a pé, as crianças e os professores cruzaram uma faixa rasa do rio a despeito do sinal de “perigo” de uma placa instalada nas margens pelas autoridades do parque local. Quem as levou para essa aventura foi o guia do passeio, que trabalha no parque. Ele não pareceu muito impressionado pelo cartaz, nem as crianças e nem nós, os pais, que acompanhávamos o tour.
Todo mundo atravessou junto, de mãos dadas, os professores, os pais, as crianças e o guia. Bom, que lição se tira daí? Elas aprendem que algumas regras podem ser quebradas, que podem confiar nas pessoas e que elas não estão sozinhas na situação de risco. No contexto da inovação, essas experiências falam por si. Inovação tem tudo a ver com, de certa forma, não seguir regras.
Questione e assuma responsabilidades
A adolescência, aquela fase de fazermos mais bobagens, acaba rápido em Israel. Aos 18 anos, meninos e meninas aderem ao exército, seja para se desenvolver no ramo aeronáutico, marítimo, terrestre, seja para se dedicar aos serviços de inteligência e segurança na unidade 8200. Todo mundo trabalha junto e constrói relações baseadas em todas as características que falei anteriormente, individualidade, trabalho em equipe, capacidade de cair e levantar, que são reforçadas durante a intensa vivência do serviço militar.
Questionar e desafiar autoridades, o que seria algo impensável no contexto militar, acontece com frequência aqui. É comum ver um oficial de baixa patente questionando o seu comandante. E está tudo bem. Esse comportamento não é apenas aceito como é encorajado.
Queremos que os jovens assumam responsabilidade e que se tornem o que chamamos de “cabeção” [ do hebraico “rosh gadol”]. Não há conotação pejorativa aqui. Ser chamado de “cabeção” significa que você pensa grande, que assume responsabilidades que não são suas porque você se preocupa, é não ter limites. Se eu encontrar um problema, eu vou tentar consertar, não vou esperar alguém aparecer para resolver. A noção de ser capaz de falar por si e se fazer ouvir é parte do DNA militar aqui e também está presente no ambiente corporativo.
Ao fim do serviço militar, esses jovens vão viajar juntos pelo mundo e depois voltam pensando em abrir seu próprio negócio. São jovens de bairros pequenos no Oriente Médio pensando que eles podem se tornar líderes mundiais em seus mercados. Eles pensam no global desde o primeiro dia, pensam além dos limites das fronteiras de Israel.
Na maior parte do tempo você vai falhar
Quem cresceu no anos 1980 aqui assistia a um programa de televisão infanto-juvenil com um personagem que convidava os telespectadores a conhecer vários lugares de Israel através de lições de história e geografia. O mais interessante é que, em cada episódio, algo ruim acontecia com ele. Ou ele despencava de uma árvore, era arrastado por uma correnteza ou se sujava todo na lama, mas sempre se levantava e dizia: “Crianças, não se preocupem, eu sempre caio mas me levanto!”. Pense no poder dessa mensagem para os jovens.
Entender que na maior parte do tempo você vai falhar e ser capaz de aceitar isso torna mais fácil para qualquer um tentar novamente. E quanto mais você tenta, maior a chance de você atingir o sucesso. Tolerância ao fracasso é parte essencial de ser um empreendedor aqui em Israel e um componente bem único, eu diria, do nosso DNA.
Mas tudo vai ficar bem
Há uma expressão que todo mundo fala pelo menos uma vez no dia, que é “Tudo vai ficar bem” [“yihiye beseder”, em hebraico]. No contexto do empreendedorismo, onde a maioria das startups falha, se você não acreditar que tudo vai ficar bem não há sentido em percorrer essa jornada. Outra palavra importante no vocabulário e na mentalidade das pessoas aqui é “propósito” [“tachles”, em hebraico]. Culturalmente, quando unimos esses comportamentos, você cria pessoas resilientes, fortes e persistentes.
Fonte – Vanessa Barbosa – Exame.com
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